segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

À beira de um precipício vai a vida quando se quer intensa.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Sexta-feira 13

Sexta-feira dia 13. Dia do azar. Dia onde as forças negras podem convergir para teres uma grande infelicidade.
Parece-me a mim que o dia não precisa de ter essa data para o infortúnio te bater à porta. Todas as decisões que tomamos convergem para acontecimentos, sem falar nas questões de saúde, pelo menos totalmente.
O azar é geralmente aquilo para o qual contribuímos, mas queremos em pensamento contrafactual arranjar argumentos de explicação e justificação, que apenas contribuem para nada se aprender ou mesmo evoluir.
Na realidade contribuímos para tudo. Salvo honrosas excepções que seres humanos excepcionais nos podem oferecer a partir da sua boa formação moral e ética.

Desonestidade Intelectual


Não há nada mais deprimente do que o ser humano que joga com as palavras. Joga consoante o seu interesse, consoante o momento e até num jogo de palavras manipula o seu interlocutor. Na desonestidade intelectual existem dois tipos de pessoas que a fazem, os que têm a perfeita consciência do jogo de manipulação e os que não têm a consciência, ou seja os burros. Parece-me a mim que a burrice também não passa da manha das palavras para quando dá jeito. Ora se conseguem ser desonestos intelectualmente, consciente ou inconscientemente remetem-se para níveis de manipulação, próprios de pessoas que não na vida para relativizarem tudo ou para com frontalidade encararem os momentos como eles deverão ser. Factuais. Não se pode ganhar sempre, não se pode estar sempre por cima, não se pode capitalizar sempre, não se pode usar sempre os outros.

A desonestidade intelectual é das coisas que mais me aflige nas pessoas. É uma espécie do que dá mais jeito, uma espécie de "deixa-me lá perceber se me posso safar", é uma espécie de "deixa-me somar". Torna o raciocínio distorcido, as discussões vazias e sobretudo a oportunidade de aprender mais viva e presente. Aprende-se, naturalmente, a estar na vida com um instinto de sobrevivência assustador. Mas parece que todos aceitamos isto, com alguma passividade.

O ser humano desonesto intelectualmente encerra em si a contradição sempre latente. Existe neste tipo de índole uma relativização de tudo para o nível do interesse, sempre próprio.
Não deixa de ser interessante o momento, em que com honestidade, quer arrecadar a honestidade, momento raro, mas que existe e sempre com grande admiração se constata.

Carece, ainda neste espaço de abstracção sobre esta questão, tentar definir a questão da desonestidade intelectual.

Uma pessoa é intelectualmente honesta quando, sabendo a verdade, afirma a verdade, reflecte sobre a verdade, infere sobre a verdade, cujo único elemento são os factos que a compõem.
Dou alguns exemplos da desonestidade intelectual. Factos e informações relevantes podem ser propositadamente omissos quando as situações contradizem a própria hipótese, ou factos podem ser apresentados de forma parcial ou retorcidos com conclusões enganosas, de modo a dar a entender outro caminho que não aquele que faz direito à verdade colocada. De um modo geral, qualquer um destes comportamentos cairia sempre sobre a desonestidade intelectual.

Também existe outro tipo de derivações da desonestidade intelectual. Aquele que ignora deliberadamente factos, argumentos ou informações que possam prejudicar a sua posição. Aqui estamos perante a subcategoria de ignorância intencional. Mas quem é que ignora intencionalmente? O desonesto intelectual.

As formas mais comuns de desonestidade intelectual incluem o plágio, a aplicação de padrões duplos, usando falsas analogias, exagero e generalização, apresentando argumentos palha e envenenando o bem que advir dos factos ou acontecimentos.

Como digo, não há nada pior que este tipo de estirpe, acima disto só o mentiroso ou o mitómano. Outro argumento para escrever neste blog.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Os animais e as pessoas

A visão que muitas vezes estás sozinha com o teu pensamento, com a tua abordagem ao mundo, com a tua maneira de ver o mundo, o que acontece muitas vezes, coloca-me numa situação de não carneirismo. Dá-me a perfeita noção que em muitas circunstâncias penso de maneira diferente. Recuso-me a ser mais uma entre muitos e que faz igual, porque é assim que todos esperam e é assim que se faz e é assim que se deve fazer.
Parece que existe um protocolo de ver, fazer e falar com um enquadramento e complacência em determinadas situações que só assim podem ser aceites por todos, caso contrário és maluca, ridícula, deselegante ou mesmo tens a mania que és melhor que os outros. Não que não haja o protocolo de vivermos em sociedade. Respeito os termos de convivência em sociedade, do civismo e do espaço do outro. Diria que até respeito demais. O que não consigo é não deixar de respeitar o meu espaço e a minha visão, quando me pedem essa anulação.
Há muito tempo, muitos anos que sei que o que me define como ser humano, não é o que faço ou o que sou, mas aquilo que quero dar aos outros e aquilo que espero da vida. Das pessoas já espero muito pouco e poucas ou nenhumas expectativas tenho. Ainda aqui e ali vou achando que posso ter alguma expectativa, mas é tão baixa que a desilusão é muito pequena.

Recentemente, o meu querido cão morreu. Desde os três meses de idade que estava connosco, estava em nossa casa. Era um companheiro que víamos como parte da família. Apesar do seu grande porte e de ter espaço no jardim, para correr e estar em liberdade, queria sempre dormir em casa e estar dentro de casa, comer o que comíamos e estar ao pé de nós. No seu instinto animal procurava a sua liberdade e lá ia fingindo quando o portão estava aberto para um passeio de liberdade só dele. Dava uma volta ao quarteirão e voltava, feliz de ter autónomo no seu passeio. Corria muito e gostava que olhassem para ele a correr, eu principalmente. Era forte e leal. Peludo e feroz. Doce e meigo, Foi com grande desgosto que o vi partir. Nunca soube o que ele pensou, nem o que achava. Mas sentia que era da minha família. Nas ultimas duas semanas vi-o sofrer, definhar sem conseguir andar que ele tanto gostava. Sofreu tanto que só de pensar que nunca soube se fiz o suficiente me martiriza. Ensinou-me que mesmo já sem conseguir andar queria viver e continuava a querer levantar-se para passear passear e se esforçava até à ultima. Quase paralitico, doia-me perceber que se queria levantar e não conseguia. Como alguém disse: estes cães são estoicos. Ele era e foi até às ultimas horas estoico, na ultima hora depois de o pormos em pé, cambaleou e deu o seu ultimo passeio, em grande sofrimento, tenho a certeza. Irei para sempre guardá-lo na minha memoria como o meu cão, o meu Fluffy, aquele que todos os dias esperava ao cimo da rampa por mim, a abanar a cauda peluda, e logo que eu abria a porta se deitava ao pé de nós, esticado no chão a ocupar a sala e a passagem. Nunca pensei que me pudesse fazer sentir tão triste a sua partida, o seu sofrimento e sobretudo a sua ausência. O Fluffly quando lhe pediam a pata ele dava a pata, nos ultimos dias quando o pediamos ele punha a pata para trás, como dizendo, já não te posso dar a para. As suas orelhas peludas e fofinhas deste Serra da Estrela, era como um indutor de relaxamento, para quem lhe fazia festas. Faz-me falta.  Dou comigo a ter os mesmos comportamentos como se ele ainda ali estivesse. Fazes-me falta.

O que espero da vida, espero-o há muito tempo. Não no sentido de projecto de vida, pois esse foi totalmente preenchido pelo nascimento da minha querida filha. Mas o que espero do amor ou o que o amor me dê. São pequenos gestos, pequenos demonstrações de "tu és importante", "tu contas" e "eu estarei sempre ao teu lado". Já abdiquei de muita coisa na vida. Já perdoei muitas vezes. Já ultrapassei muitos desaforos a pessoas que são mal formadas e que estão na vida como um acção está na bolsa, Tudo tem um valor, e até podemos trocar, mas a seu tempo, quando sobre ou desce. Mas a vida também já me ensinou que não chega perdoar. As pessoas vão repetir as mesmas acções ou palavras.
Não há nada pior na vida que um ser humano que na sua condição de imortal acha que pode dizer tudo o que lhe vai alma e depois a seguir pedir desculpa. Nada retira aquelas acções ou aquelas palavras. A partir daí só o gesto de querer fazer um pouco melhor pode contar.

Já fui amada por muitos. Muitas paixões assolapadas passaram por mim, dessas paixões existiu sempre o amargo que se não forem compensados na devida visão própria, tornam-se vingativos e dão um retorno de nada mais tenho para dar.

Amor não é dar. Amor é cuidar. Amor para mim é a troca de um momento que é naquele momento que é preciso. Nada passa duas vezes, nada acontece duas vezes. Amor para mim é quando mesmo quando tudo corre mal, está lá alguém que abraça, cuida e sem moeda de troca em silêncio da sentir o seu amor.

Sou parca na manifestação do amor. É um estilo. Não sou de grandes manifestações de carinho. Não tenho grandes planos de surpreender ou de planear coisas românticas. Mas estarei sempre lá quando é preciso. E mesmo quando não é preciso.
Preciso de pouco e pouco ou nada peço. Como alguém me disse não tenho esse direito. Fi-lo há pouco tempo. Pedi. Pedi apenas porque precisava de um abraço, de um espaço, de  um tempo, para me refortalecer. Não veio, não havia. O que pedia era um grande sacrifício ao qual não tinha direito de pedir. Bem verdade! Não tenho o direito de pedir nada a ninguém.
E assim vai o amor dos humanos, sempre cheio de contra partidas, muitas palavras azedas de revolta, muita vingança e muito pouca vontade de fazer algum tipo de concessão sem nada em troca.

Tenho saudades de ti FLUFFY nunca me pediste nada em troca. Como a Brigitte Bardot dizia: Quanto mais conheço os humanos mais gosto dos animais. O que me parecia na altura uma loucura, hoje, revejo-me, compreendo e sinto que é no amor incondicional que estará a verdadeira essência do amor. O amor que só os animais nos podem dar.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Primeiro estranha-se e depois entranha-se


De regresso a Angola. Passou um ano e três meses, desde a última vez.

Ao fechar as malas existe aquela sensação de missão. Não é uma viagem cultural. Não é uma viagem de lazer. Nem sequer uma viagem de trabalho qualquer. É uma viagem em que temos de começar um projecto de raiz num pais que não conhecemos e com uma cultura em muitos aspectos completamente diferente da nossa, isto num país que, viveu, ainda há doze anos mergulhado numa guerra civil de trinta e oito anos. 

É o povo. O povo, a matéria mais indiferenciada, que sofreu. Sofreu, não só na fome, mas na habitação, na educação e desenvolvimento cognitivo, na saúde e principalmente na família. Sofreu, sobretudo porque lhe retiraram o pensamento. A capacidade de pensar e reflectir para além das necessidades básicas. A capacidade de pensar com liberdade intelectual. Aprendeu-se a não pensar. Existe um instinto de sobrevivência marcado e perceptível em todos. A capacidade de construir uma identidade una em cada um é raramente identificada. São todos uma grande massa. São indiferenciados. São repetidos. A identidade construída é igual para todos. Humildade. Necessidade de agradar. O sim a tudo, mesmo que não sintam ou não queiram e sobretudo que saibam que nem o vão fazer. O "sem pensar" esconde o medo de trinta e oito anos de guerrilha. Dizem que os mais velhos, não acreditam que a guerra acabou. Pois passados doze anos está tudo pior. Não sei como era, mas percebo o pior.

Não é uma viagem qualquer. 

Com ansiedade de ver, observar e compreender o que está por detrás de cada comportamento, motivo-me a ir. Sobretudo o desafio de fazer com sucesso o projecto e retornar sem nenhum dano.

Quando saímos do aeroporto o cheiro é inconfundível. Cheira a África. Um dia disseram-me isto e eu fiquei a pensar: que estupidez! Como se houvesse um cheiro de África. Mas existe! E entranha-se. Existe algo por detrás deste cheiro, uma liberdade inenarrável.

Fazemos mais duzentos e cinquenta quilómetros até à província de Kwanza Norte, N'Dalatando, (antiga Cidade de Salazar), mais propriamente. Numa estrada de apenas uma faixa de alcatrão, sem bermas, circunscrita pelo capim verde e feita por construções chinesas que abre crateras nos dois sentidos, desconfiamos.   É preciso cuidado, muito cuidado. É o nosso motorista que o diz, conformado. Depois de uns vinte quilómetros a rede de telemóvel perde-se e perde-se. Passam-se mais de cem quilómetros sem rede. Olho constantemente para o telemóvel para ver quando temos rede. Penso que se existir alguma fatalidade, será isso mesmo uma fatalidade. Sem o socorro do 112 ou bombeiros. Não se sabe o que pode acontecer, quem nos socorre. Os camiões passam descontrolados, há ultrapassagens loucas e vai-se vendo carros acidentados aqui e ali.


A contrastar com este pensamento de fatalidade, começamos a avistar a paisagem do norte de Angola. As montanhas e os montes carregados de floresta verde e densa, quase indivisível. Os Embondeiros esguios irrompem entre a vegetação subindo ao céu, com os Múkua pendurados como se de um adorno se tratasse. É extasiante de magnifico. É mais do que magnifico, é África ainda pura. Não há musseque, nem vendas loucas, não há transito nem o cheiro a gasóleo. Ao longo da estrada vamos vendo povoamentos em cubatas de barro, telhados de zinco seguros por tijolos ou telhados de capim seco. Não são mais que vinte ou trinta cubatas em cada povoado. Com pequenas vendas que cada um faz, carpo da lavoura. São dez ou quinze peças de cada legume. Entre a exposição escassa e sem abundância. São tomates. São batatas. São gindungos. Não há muita variedade. Escasseia tudo. É peixe quase podre de tantas moscas pousadas e do calor insuportável. São dois ou três macacos pendurados. As caras apáticas, por detrás dos alguidares coloridos da venda, não fazem por vender, esperam só.
- É uma carne boa, seca. Diz o nosso motorista, quando expresso a minha surpresa de se comer macacos. Mas é um animal selvagem? Tudo se vende, sem rótulos, prazos de validade, sem embalagem e sem tabelas. É o mercado livre que sustenta todos, num país sem trabalho e que fora de Luanda quase sem esperança, sem alento, mas que ninguém se queixa ou chora ou lamenta.

O povo está conformado. Sobrevive.

Estamos quase a chegar perto da capital da província, N'Dalatando. Sinto-me mal disposta, mas feliz pela paisagem deslumbrante que vou usufruindo até chegar ao destino.
Vislumbro uma extensão de musseque na paisagem. Barrento e zincado. A cidade é feita praticamente de musseque. A primeira imagem que me vem à memória é Serra Leoa. Parece um campo de refugiados. Ao entrar na cidade lá se veem as construções coloniais e do Estado Novo. Sinto a clivagem total entre os portugueses e os angolanos. Ainda ali, não são só vestígios, são as únicas construções de estrutura de cimento, organizada, coloridas que existem. O resto é uma massa de barro disforme com telhados de zinco. Estivemos ali e construímos bem. Vê-se um edifício apalaçado, com cópula e colunas de mármore na entrada, agora é a sede de um banco, tudo meio destruído e sem qualquer manutenção. Estão praticamente ao abandono. Vê-se outro imponente, em amarelo, é o governo da cidade. Outro o hospital. Tudo o que é decente, do ponto de vista arquitectónico é colonial. Ainda não chegou o progresso da aclamada paz à cidade de N'Dalatando.

Estamos instalados num "hotel", cujos quartos parecem quartos de apartamento de aluguer, todos diferentes, sem os padrões hoteleiros, sem chave magnética, por entre corredores labirínticos carrego uma chave com um pedaço enorme de madeira e subo, pelas escadas, até um segundo andar uma mala de vinte quilos. Construídos com materiais diferentes de quarto para quarto, sem um projecto por detrás, assim se sente. Quando abro o quarto que me foi designado, o sentimento de desalento assola-me. O cheiro bafiento que sai da porta é nauseabundo, a penumbra que as cortinas pesadas de pano verde com umas flores castanhas fazem sentir. Acendo a luz, abro as cortinas. Não sei por onde começar. Desfaço a cama até aos pés e claro, indescritível. Munida de uns lençóis e uma almofada começo o makeover do quarto que me foi destinado nas próximas semanas. Vou à casa de banho e constato que não há possibilidades de makeover. O banho tem de ser de havaianas e a porta tem de estar sempre fechada.  O cheiro é tal que para dormir tenho de pôr perfume nos cantos do nariz para disfarçar. Após alguns dias já me tinha habituado... ao ritual do perfume e a tudo menos bom. 
Esta narração menos boa, abre uma infinidade de oportunidades, porque tudo o que vier melhor é bem-vindo e pouco expectante, funciona como uma dádiva.
Assim foi, num dia que pudemos descemos a Kilombo, situado na reserva da florestal tropical da província, vemos o melhor que Angola nos pode oferecer. Percebemos agora porque se chama cidade jardim. Esta floresta densa e imponente encerra em si plantas, flores e árvores que nunca vi. Uma vastidão que apenas de jipe é possível percorrer, diz que tem todos os animais selvagens. Mas nunca vimos. Diz-me que pelos anos prolongados de guerra os animais fugiram e serviram de alimento.
Uma das belezas: a rosa de porcelana. Uma espécie de flor com uma composição dura e emborrachada, magnifica de cor-de-rosa pálido. Vendem-se ao chegar. São as Mafumeiras e os bambús gigantes, uma selva, com os riachos a contornar a e a passar no meio da floresta tropical, que nos transportam, ouvem-se os gritos dos pássaros. Escura e húmida, as árvores multiplicam-se, na floresta. 
Por fim a quedas Kalandula. É preciso ir e ver. O som da água a cair faz-nos falar mais alto, sem darmos quase por isso. Sente-se a frescura dos salpicos, na cara, da água que cai pela encosta. Sente-se a natureza como não se sente no nosso dia-a-dia. Com força, vibrante e faz-nos pequeninos. 
O melhor.

Mas o que quero memorizar nesta viagem é outra coisa. 

É domingo de Páscoa! O motorista que sabe que sou católica convida-me para ir à Missa. Aqui, posso dizer que tive a honra de participar na missa católica da congregação de N'Dalatando. A igreja cheia. Domingo de Páscoa. Os meninos e meninas vão ser baptizados. O sacramento do baptismo é feito depois de três anos de catequese. Vestidos com a sua melhor roupa de cerimónia. Eles com os fatos pretos esgarçados, rotos,  gastos, tamanhos pequenos para a idade e também grandes e alguns um pouco sujos, todos de gravata, laço preto e camisa branca amarelada e coçada. O seu melhor e mais digna indumentária para a Páscoa e receber o sagrado sacramento. Elas em vestido de noiva várias vezes usados, cheios de luzinhas, pérolas e rendilhados, com o cabelo arranjado, com ganchos de flores brancas grandes e pequenas que descem pelas caras negras e brilhantes. Todas de meias brancas pelos joelhos e luvas de todos os feitios, rendas e bordados coçados e descolorados. Todas bonitas e sorridentes. 
Hoje é um dia especial. O dia em que são recebidos pela comunidade católica e que mostram o orgulho de pertencer.
Fomos recebidos com a humildade que caracteriza o povo angolano. Igreja cheia, estavam cerca de mil pessoas, mulheres, homens e crianças de todas as idades. Mal se conseguia romper ou ver o altar. O nosso motorista pôs os seus contactos em marcha e mesmo depois de uma igreja apinhada de gente, lá fomos catapultados para a frente e logo nos arranjaram duas cadeiras de plástico branco no palanque, praticamente em frente ao altar. Éramos os únicos pulas, portugueses brancos, éramos bem-vindos. Partilharam connosco a sua riqueza. Rezamos juntos.
O ritual da missa foi surpreendentemente diferente do nosso. Mal se iniciou o ritual, percebíamos que estávamos em África. Os batuques dos tambores, as matracas, as vozes africanas, com gritos e sons de uma alegria que nos contagiava e emocionava. 
Uma missa espectáculo. Cantaram a missa toda em Kimbundu e em português. Dançaram. Ofereceram aos mais paupérrimos o que podiam. No ritual das oferendas que conhecemos na missa e que com rotina sem pensar deitamos dinheiro dentro de uma cesta. Aqui o povo descalçou os sapatos em sinal de respeito por quem têm menos e na cesta das oferendas deram o que tinham, ovos, amendoins, batatas, bancos de plástico, cadeiras. O que me emocionou foi saber que quem ofereceu também não tem nada, mas o pouco que tem reparte.
Não tenho sequer palavras para descrever a simplicidade e humildade que assisti. Estamos tão longe deste humanismo. África estranha-se e depois entranha-se. Percebo agora o magnetismo que exerce. Tudo o que é menos bom torna-se um detalhe com pouca importância.