De regresso a
Angola. Passou um ano e três meses, desde a última vez.
Ao fechar
as malas existe aquela sensação de missão. Não é uma viagem cultural. Não é uma
viagem de lazer. Nem sequer uma viagem de trabalho qualquer. É uma viagem em que temos de começar um projecto de raiz num pais que não conhecemos e com uma cultura em muitos aspectos completamente diferente da nossa, isto num país que, viveu, ainda há doze anos mergulhado numa guerra civil de
trinta e oito anos.
É o povo. O
povo, a matéria mais indiferenciada, que sofreu. Sofreu, não só na fome,
mas na habitação, na educação e desenvolvimento cognitivo, na saúde e principalmente na família. Sofreu, sobretudo
porque lhe retiraram o pensamento. A capacidade de pensar e reflectir para além
das necessidades básicas. A capacidade de pensar com liberdade intelectual. Aprendeu-se a não pensar. Existe um instinto de sobrevivência marcado e perceptível em todos. A
capacidade de construir uma identidade una em cada um é raramente identificada. São todos uma grande
massa. São indiferenciados. São repetidos. A identidade construída é igual para
todos. Humildade. Necessidade de agradar. O sim a tudo, mesmo que não sintam ou não queiram e sobretudo que saibam que nem o vão fazer. O "sem pensar" esconde o
medo de trinta e oito anos de guerrilha. Dizem que os mais velhos, não
acreditam que a guerra acabou. Pois passados doze anos está tudo pior. Não sei como era, mas percebo o pior.
Não é uma
viagem qualquer.
Com ansiedade
de ver, observar e compreender o que está por detrás de cada comportamento,
motivo-me a ir. Sobretudo o desafio de fazer com sucesso o projecto e retornar sem nenhum dano.
Quando saímos do
aeroporto o cheiro é inconfundível. Cheira a África. Um dia
disseram-me isto e eu fiquei a pensar: que estupidez! Como se houvesse um
cheiro de África. Mas existe! E entranha-se. Existe algo por detrás deste cheiro,
uma liberdade inenarrável.
Fazemos mais
duzentos e cinquenta quilómetros até à província de Kwanza Norte, N'Dalatando, (antiga Cidade de Salazar), mais propriamente. Numa
estrada de apenas uma faixa de alcatrão, sem bermas, circunscrita pelo capim verde e
feita por construções chinesas que abre crateras nos dois sentidos, desconfiamos. - É preciso cuidado, muito cuidado. É o nosso
motorista que o diz, conformado. Depois de uns vinte quilómetros a rede de
telemóvel perde-se e perde-se. Passam-se mais de cem quilómetros sem rede. Olho
constantemente para o telemóvel para ver quando temos rede. Penso que se
existir alguma fatalidade, será isso mesmo uma fatalidade. Sem o socorro do 112
ou bombeiros. Não se sabe o que pode acontecer, quem nos socorre. Os camiões
passam descontrolados, há ultrapassagens loucas e vai-se vendo carros
acidentados aqui e ali.
A contrastar
com este pensamento de fatalidade, começamos a avistar a paisagem do norte de Angola. As
montanhas e os montes carregados de floresta verde e densa, quase indivisível. Os Embondeiros esguios irrompem entre a vegetação subindo ao céu, com os Múkua
pendurados como se de um adorno se tratasse. É extasiante de magnifico. É mais do
que magnifico, é África ainda pura. Não há musseque, nem vendas loucas, não há
transito nem o cheiro a gasóleo. Ao longo da estrada vamos vendo povoamentos em
cubatas de barro, telhados de zinco seguros por tijolos ou telhados de capim
seco. Não são mais que vinte ou trinta cubatas em cada povoado. Com pequenas
vendas que cada um faz, carpo da lavoura. São dez ou quinze peças de cada
legume. Entre a exposição escassa e sem abundância. São tomates. São batatas. São gindungos. Não há muita variedade.
Escasseia tudo. É peixe quase podre de tantas moscas pousadas e do calor
insuportável. São dois ou três macacos pendurados. As caras
apáticas, por detrás dos alguidares coloridos da venda, não fazem por vender, esperam só.
- É uma carne
boa, seca. Diz o nosso motorista, quando expresso a minha surpresa de se comer macacos. Mas é um
animal selvagem? Tudo se vende, sem rótulos, prazos de validade, sem embalagem
e sem tabelas. É o mercado livre que sustenta todos, num país sem trabalho e que fora de Luanda quase sem esperança, sem alento, mas que ninguém se queixa ou chora
ou lamenta.
O povo está
conformado. Sobrevive.
Estamos quase a chegar perto da capital da província, N'Dalatando. Sinto-me mal disposta, mas feliz pela paisagem deslumbrante que vou usufruindo até chegar ao destino.
Vislumbro uma
extensão de musseque na paisagem. Barrento e zincado. A cidade é feita praticamente de musseque. A primeira imagem que me vem à memória é Serra Leoa. Parece um campo de refugiados. Ao entrar na cidade lá se veem as construções
coloniais e do Estado Novo. Sinto a clivagem total entre os portugueses e os angolanos. Ainda
ali, não são só vestígios, são as únicas construções de estrutura de cimento, organizada, coloridas que existem. O resto é uma massa de barro disforme com telhados de
zinco. Estivemos ali e construímos bem. Vê-se um edifício apalaçado, com cópula
e colunas de mármore na entrada, agora é a sede de um banco, tudo meio destruído e sem qualquer manutenção. Estão praticamente ao abandono. Vê-se outro
imponente, em amarelo, é o governo da cidade. Outro o hospital. Tudo o que é
decente, do ponto de vista arquitectónico é colonial. Ainda não chegou o progresso da aclamada paz à cidade de
N'Dalatando.
Estamos instalados num "hotel", cujos
quartos parecem quartos de apartamento de aluguer, todos diferentes,
sem os padrões hoteleiros, sem chave magnética, por entre corredores labirínticos carrego uma chave com um pedaço enorme de madeira e subo, pelas escadas, até um segundo andar uma mala de vinte quilos. Construídos com materiais diferentes de quarto para quarto, sem um projecto por detrás, assim se sente. Quando abro o quarto que me foi designado, o sentimento de desalento assola-me. O cheiro bafiento que sai da porta é nauseabundo, a penumbra que as cortinas pesadas de pano verde com umas flores castanhas fazem sentir. Acendo a luz, abro as cortinas. Não sei por onde começar. Desfaço a cama até aos pés e claro, indescritível. Munida de uns lençóis e uma almofada começo o makeover do quarto que me foi destinado nas próximas semanas. Vou à casa de banho e constato que não há possibilidades de makeover. O banho tem de ser de havaianas e a porta tem de estar sempre fechada. O cheiro é tal que para dormir tenho de pôr perfume nos cantos do nariz para disfarçar. Após alguns dias já me tinha habituado... ao ritual do perfume e a tudo menos bom.
Esta narração menos boa, abre uma infinidade de oportunidades, porque tudo o que vier melhor é bem-vindo e pouco expectante, funciona como uma dádiva.
Assim foi, num dia que pudemos descemos a Kilombo, situado na reserva da florestal tropical da província, vemos o melhor que Angola nos pode oferecer. Percebemos agora porque se chama cidade jardim. Esta floresta densa e imponente encerra em si plantas, flores e árvores que nunca vi. Uma vastidão que apenas de jipe é possível percorrer, diz que tem todos os animais selvagens. Mas nunca vimos. Diz-me que pelos anos prolongados de guerra os animais fugiram e serviram de alimento.
Uma das belezas: a rosa de porcelana. Uma espécie de flor com uma composição dura e emborrachada, magnifica de cor-de-rosa pálido. Vendem-se ao chegar. São as Mafumeiras e os bambús gigantes, uma selva, com os riachos a contornar a e a passar no meio da floresta tropical, que nos transportam, ouvem-se os gritos dos pássaros. Escura e húmida, as árvores multiplicam-se, na floresta.
Por fim a quedas Kalandula. É preciso ir e ver. O som da água a cair faz-nos falar mais alto, sem darmos quase por isso. Sente-se a frescura dos salpicos, na cara, da água que cai pela encosta. Sente-se a natureza como não se sente no nosso dia-a-dia. Com força, vibrante e faz-nos pequeninos.
O melhor.
Mas o que quero memorizar nesta viagem é outra coisa.
É domingo de
Páscoa! O motorista que sabe que sou católica convida-me para ir à Missa. Aqui, posso dizer que tive a honra
de participar na missa católica da congregação de N'Dalatando. A igreja cheia.
Domingo de Páscoa. Os meninos e meninas vão ser baptizados. O sacramento do
baptismo é feito depois de três anos de catequese. Vestidos com a sua melhor
roupa de cerimónia. Eles com os fatos pretos esgarçados, rotos, gastos, tamanhos pequenos para a idade e também grandes e alguns
um pouco sujos, todos de gravata, laço preto e camisa branca amarelada e
coçada. O seu melhor e mais digna indumentária para a Páscoa e receber o sagrado sacramento. Elas em vestido de noiva várias vezes usados, cheios de luzinhas, pérolas e
rendilhados, com o cabelo arranjado, com ganchos de flores brancas grandes e
pequenas que descem pelas caras negras e brilhantes. Todas de meias brancas pelos joelhos e luvas de
todos os feitios, rendas e bordados coçados e descolorados. Todas
bonitas e sorridentes.
Hoje é um dia especial. O dia em que são recebidos pela
comunidade católica e que mostram o orgulho de pertencer.
Fomos
recebidos com a humildade que caracteriza o povo angolano. Igreja cheia, estavam
cerca de mil pessoas, mulheres, homens e crianças de todas as idades. Mal se
conseguia romper ou ver o altar. O nosso motorista pôs os seus contactos em marcha e mesmo depois de uma igreja apinhada de gente, lá fomos catapultados para a frente e logo nos arranjaram duas cadeiras de
plástico branco no palanque, praticamente em frente ao altar. Éramos
os únicos pulas, portugueses brancos, éramos bem-vindos. Partilharam connosco a
sua riqueza. Rezamos juntos.
O ritual da
missa foi surpreendentemente diferente do nosso. Mal se iniciou o ritual,
percebíamos que estávamos em África. Os batuques dos tambores, as matracas, as vozes africanas, com gritos e sons de uma alegria que nos contagiava e emocionava.
Uma missa espectáculo. Cantaram a missa toda
em Kimbundu e em português. Dançaram. Ofereceram aos mais paupérrimos o que
podiam. No ritual das oferendas que conhecemos na missa e que com rotina sem pensar deitamos dinheiro dentro de uma cesta. Aqui o povo descalçou os sapatos em sinal de
respeito por quem têm menos e na cesta das oferendas deram o que
tinham, ovos, amendoins, batatas, bancos de plástico, cadeiras. O que me emocionou
foi saber que quem ofereceu também não tem nada, mas o pouco que tem reparte.
Não tenho
sequer palavras para descrever a simplicidade e humildade que assisti. Estamos
tão longe deste humanismo. África estranha-se e depois entranha-se. Percebo agora o magnetismo que exerce. Tudo o que é menos bom torna-se um detalhe com pouca importância.
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