terça-feira, 5 de novembro de 2013

Por terras de Angola


A minha primeira experiência de trabalho em África foi  em Angola. 
Quando o avião começou a aproximar-se da cidade de Luanda, a janela do avião fazia-nos ver uma imagem quase de cor única, homogénea e poeirenta. A imagem de milhares e milhares de barracas, que se prologava por quilómetros e quilómetros, em tons de barro seco ainda me está na memória. Quando cheguei senti o cheiro de África. Percebi que era outra realidade. A humidade pegajosa do calor que entrava pelas portas automáticas da entrada do aeroporto era asfixiante.
Ainda dentro do aeroporto o contacto com os guardas da alfândega era em tom ameaçador, iam balbuciando algumas palavras na mesma língua que a minha, mas eram quase imperceptíveis, tentando uma gratificação por pressão psicológica dos passageiros que chegavam de Lisboa, a título de “vens cá trabalhar”, como se fossemos clandestinos. Foi incomum e sui generis. Não era só o tratamento por tu, era o desapego com que falavam, em tom repetitivo e desapaixonado, como quem já o havia feito mais de mil vezes, sem mais nenhum interesse que não fosse o dinheiro. Faziam perceber que a realidade era outra. Ninguém nos cumprimentava ou dava as boas-vindas, não havia sorrisos nem receptividade para o acolhimento. Foi quando pensei e equacionei que num pais irmão, que tem a mesma língua, cruzamento na História, não tinha grande afinidade.
Já à porta do aeroporto, constatei que nos tinham esquecido de ir buscar. Coisa comum ao que parece. A falta de pontualidade ou de cumprimento dos deveres, em terras de Angola. Existe sempre uma justificação para os acontecimentos, nada se previne, nada se planeia, tudo é possível, tudo é normal, tudo é tolerável. Tinha acabado de chegar a uma nova cadência, a uma nova pulsação.
À saída, e em andamento para o destino que me esperava, a multidão de gente e carros encavalava-se por todo lado, cruzavam-se pessoas nas ruas em todas as direcções, umas pareciam perdidas, outras nas estradas pediam, vendiam e passavam para um destino difícil de perceber.
As barracas multiplicam-se por todo o lado, com telhados de zinco e plástico fechados com tijolos soltos que faziam de peso para o telhado não se soltar, as janelas e as portas todas com grades de segurança. Fazia-me adivinhar a insegurança da cidade.
A imundície, o lixo, os restos tudo se amontoava nas bermas, no meio, em todo o lado, a pobreza chocante, contrastava com os carros de alta cilindrada que passavam não tão pouco frequentemente.
Os candongueiros, o meio de transporte de Angola, afunilavam-se nas ruas. São as Hiaces dos anos 70 em Portugal, agora azuis e brancas, decoradas com dizeres malandros, galhardetes de clubes de futebol, autocolantes, nomes de futebolistas, crenças e agradecimentos em letras garrafais.
No traçado da infra-estrutura da cidade, chocamos com uma arquitectura portuguesa da década de 50, grande parte em muito mau estado de conservação. Prédios que nos fazem lembrar os subúrbios de Lisboa, como a Damaia, estavam ali replicados. A construção megalómana da Assembleia Constituinte no centro da cidade dita a grandiosidade do crescimento do país, mas choca pela pobreza envolvente. Por todo o lado se fazem trocas e vendas de qualquer coisa. Tudo se vende na rua. O mercado informal, cujo tamanho desconhecemos, deve empregar, mais de metade da população, a perceber pela quantidade de desempregados que chegavam através das candidaturas, praticamente 100%. O mercado informal que deve servir as necessidades de bens de consumo uma percentagem muito alta a população de Luanda. Dada a escassez de produtos e serviços que o país se depara.
Inaugurámos o trabalho. O contacto com as pessoas que nos chegavam a pedir trabalho contradizia a impressão da arrogância sentida no aeroporto. A humildade e simpatia existiam. Chegavam às dezenas à nossa porta, esperavam horas para falar, na esperança de um trabalho que lhe desse a perspectiva de uma vida melhor. Uma vida que esqueça os mais de 30 anos de guerra, que silencie a doença, que cale a fome de um país deprimido e que parece ter esquecido o povo na sua crescente riqueza.
As balbúrdias e tropelias somavam. Compras simples do dia-a-dia demoravam horas de percurso e transformavam-se em dias inteiros de digressão pelas estradas de Luanda, no pára arranca do trânsito. Os assaltos com armas à nossa equipa, à nossa porta, para roubar telemóveis e os escassos kwanzas entravam por ali adentro. Ainda que com segurança à porta armado com uma G3. Trabalhadores que desapareciam. Apareciam depois, alguns…alcoolizados. Outros emergidos da morte de um familiar. O álcool é um problema com o qual o país vai ter de lidar no futuro. O povo, homens e mulheres vivem mergulhados no álcool. Submergidos numa desorganização familiar, as mulheres têm três, quatro, cinco e seis filhos, desde muito jovens, são crianças mulheres quando têm os primeiros filhos. Filhos de homens diferentes que não assumem a paternidade e por todos é aceite sem discussão, com naturalidade. São os tios, avós, pais da mulher que assumem o papel de pai na vida das crianças, com todas as fatalidades que possa abranger na falta do papel de pai. Por isso a morte de um homem da família, sejam tios, avós, irmãos, é a morte de um pai. Por isso o pai morre tantas vezes.
Um dia à noite, de partida para um jantar de Luanda, nos famosos restaurantes que abriram recentemente pela ilha de Luanda, conhecemos uma nova Luanda. Com a baia de água negra a reflectir uma luz brilhante espelhada pelo luar e pelas luzes da marginal, a par com as luzes das novas construções de hotéis e empresas. Descobrimos um lado apaixonante da cidade, o lado palpitante do crescimento do país. O lado que não deixa ver as imperfeições e as dificuldades.
Deixa-nos perceber com alguma perplexidade e facilidade as assimetrias sociais, culturais e económicas tão profundas. A vida nocturna de luxo e inacessível a quase todos, ali no meio de tudo o resto.
Foi com um misto de alívio e tristeza que trinta dias depois deixei o projecto e regressei a Lisboa, mas senti um amargo. Não só por algumas histórias e circunstâncias das vidas que me iam chegando contadas e sentidas, mas por perceber que não fazemos falta. Não sou do tempo colonialista, nem sei bem que significado possa ter para os angolanos. Não sei o que é um país ter o domínio e poder sobre outro. Não sou racista, nem chauvinista, não tenho qualquer tipo de presunção sobre ninguém, mas tenho uma assunção da minha experiência, da minha visão e de um sentir sobre um país, sobre um povo. Não sei se somos bem-vindos naquele país onde estive por um breve período de tempo a trabalhar para construir, ainda que por um período muito, muito diminuto, uma melhor organização, uma melhor herança de trabalho. Num pais que tanto precisa.
Em viagem para o Lobito, descobri ao longo de seiscentos quilómetros, uma nova Angola. Não é uma viagem fácil entre barreiras policiais, com os respectivos subornos, pois existe sempre qualquer coisa que está em infracção para quem não é do país. A descoberta de uma nova Africa nas suas paisagens, desde a passagem por Porto Aboim até ao Lobito, empolgante e arrebatadora. Até ao Lubango, passando pelos embondeiros, as palhotas, os desfiladeiros, a serra da Leba, a Fenda da Tundavala, a Restinga...Mas este episódio por terras angolanas fica para uma nova história, com uma perspectiva mais positiva e sobretudo apaixonante. 

1 comentário:

  1. Incrível como a descrição da chegada, as peripécias de sair do aeroporto, o relato do trânsito caótico , a invocação ao mercado informal, me trazem à memória a experiência de 2007, todavia há algo de viciante nesta África imensa, pois o cheiro é único. Pessoas a circular sem rumo mas afáveis no trato.

    Recomendo uma visita a Moçambique onde aqui vamos encontrar o mesmo cheiro , as mesmas pessoas afáveis mas uma grande diferença face a Angola: a palavra esperança tem aqui um verdadeiro significado. É está a grande diferença

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