A minha primeira experiência de trabalho em África foi em Angola.
Quando o avião começou a aproximar-se da cidade de
Luanda, a janela do avião fazia-nos ver uma imagem quase de cor única,
homogénea e poeirenta. A imagem de milhares e milhares de barracas, que se
prologava por quilómetros e quilómetros, em tons de barro seco ainda me está na
memória. Quando cheguei senti o cheiro de África. Percebi que era outra
realidade. A humidade pegajosa do calor que entrava pelas portas automáticas da
entrada do aeroporto era asfixiante.
Ainda dentro do aeroporto o contacto com os
guardas da alfândega era em tom ameaçador, iam balbuciando algumas palavras na
mesma língua que a minha, mas eram quase imperceptíveis, tentando uma
gratificação por pressão psicológica dos passageiros que chegavam de Lisboa, a
título de “vens cá trabalhar”, como se fossemos clandestinos. Foi incomum e sui
generis. Não era só o tratamento por tu, era o desapego com que falavam, em tom
repetitivo e desapaixonado, como quem já o havia feito mais de mil vezes, sem
mais nenhum interesse que não fosse o dinheiro. Faziam perceber que a realidade
era outra. Ninguém nos cumprimentava ou dava as boas-vindas, não havia sorrisos
nem receptividade para o acolhimento. Foi quando pensei e equacionei que num
pais irmão, que tem a mesma língua, cruzamento na História, não tinha grande
afinidade.
Já à porta do aeroporto, constatei que nos tinham
esquecido de ir buscar. Coisa comum ao que parece. A falta de pontualidade ou de cumprimento
dos deveres, em terras de Angola. Existe sempre uma justificação para os
acontecimentos, nada se previne, nada se planeia, tudo é possível, tudo é
normal, tudo é tolerável. Tinha acabado de chegar a uma nova cadência, a uma
nova pulsação.
À saída, e em andamento para o destino que me
esperava, a multidão de gente e carros encavalava-se por todo lado, cruzavam-se
pessoas nas ruas em todas as direcções, umas pareciam perdidas, outras nas
estradas pediam, vendiam e passavam para um destino difícil de perceber.
As barracas multiplicam-se por todo o lado, com
telhados de zinco e plástico fechados com tijolos soltos que faziam de peso
para o telhado não se soltar, as janelas e as portas todas com grades de
segurança. Fazia-me adivinhar a insegurança da cidade.
A imundície, o lixo, os restos tudo se amontoava
nas bermas, no meio, em todo o lado, a pobreza chocante, contrastava com os
carros de alta cilindrada que passavam não tão pouco frequentemente.
Os candongueiros, o meio de transporte de Angola,
afunilavam-se nas ruas. São as Hiaces dos anos 70 em Portugal, agora azuis e
brancas, decoradas com dizeres malandros, galhardetes de clubes de futebol,
autocolantes, nomes de futebolistas, crenças e agradecimentos em letras
garrafais.
No traçado da infra-estrutura da cidade, chocamos
com uma arquitectura portuguesa da década de 50, grande parte em muito mau
estado de conservação. Prédios que nos fazem lembrar os subúrbios de Lisboa,
como a Damaia, estavam ali replicados. A construção megalómana da Assembleia
Constituinte no centro da cidade dita a grandiosidade do crescimento do país,
mas choca pela pobreza envolvente. Por todo o lado se fazem trocas e vendas de
qualquer coisa. Tudo se vende na rua. O mercado informal, cujo tamanho desconhecemos, deve empregar, mais de metade da população, a perceber pela quantidade
de desempregados que chegavam através das candidaturas, praticamente 100%. O
mercado informal que deve servir as necessidades de bens de consumo uma
percentagem muito alta a população de Luanda. Dada a escassez de produtos e
serviços que o país se depara.
Inaugurámos o trabalho. O contacto com as pessoas
que nos chegavam a pedir trabalho contradizia a impressão da arrogância sentida
no aeroporto. A humildade e simpatia existiam. Chegavam às dezenas à nossa
porta, esperavam horas para falar, na esperança de um trabalho que lhe
desse a perspectiva de uma vida melhor. Uma vida que esqueça os mais de 30 anos
de guerra, que silencie a doença, que cale a fome de um país deprimido e que
parece ter esquecido o povo na sua crescente riqueza.
As balbúrdias e tropelias somavam. Compras
simples do dia-a-dia demoravam horas de percurso e transformavam-se em dias
inteiros de digressão pelas estradas de Luanda, no pára arranca do trânsito. Os
assaltos com armas à nossa equipa, à nossa porta, para roubar telemóveis e os
escassos kwanzas entravam por ali adentro. Ainda que com segurança à porta
armado com uma G3. Trabalhadores que desapareciam. Apareciam depois,
alguns…alcoolizados. Outros emergidos da morte de um familiar. O álcool é um
problema com o qual o país vai ter de lidar no futuro. O povo, homens e
mulheres vivem mergulhados no álcool. Submergidos numa desorganização familiar,
as mulheres têm três, quatro, cinco e seis filhos, desde muito jovens, são
crianças mulheres quando têm os primeiros filhos. Filhos de homens diferentes
que não assumem a paternidade e por todos é aceite sem discussão, com
naturalidade. São os tios, avós, pais da mulher que assumem o papel de pai na
vida das crianças, com todas as fatalidades que possa abranger na falta do
papel de pai. Por isso a morte de um homem da família, sejam tios, avós,
irmãos, é a morte de um pai. Por isso o pai morre tantas vezes.
Um dia à noite, de partida para um jantar de
Luanda, nos famosos restaurantes que abriram recentemente pela ilha de Luanda,
conhecemos uma nova Luanda. Com a baia de água negra a reflectir uma luz
brilhante espelhada pelo luar e pelas luzes da marginal, a par com as luzes das novas construções de hotéis e empresas.
Descobrimos um lado apaixonante da cidade, o lado palpitante do crescimento do
país. O lado que não deixa ver as imperfeições e as dificuldades.
Deixa-nos perceber com alguma perplexidade e facilidade as
assimetrias sociais, culturais e económicas tão profundas. A vida nocturna de luxo e inacessível a quase todos, ali no meio de tudo o resto.
Foi com um misto de alívio e tristeza que trinta dias
depois deixei o projecto e regressei a Lisboa, mas senti um amargo. Não só por
algumas histórias e circunstâncias das vidas que me iam chegando contadas e
sentidas, mas por perceber que não fazemos falta. Não sou do tempo
colonialista, nem sei bem que significado possa ter para os angolanos. Não sei
o que é um país ter o domínio e poder sobre outro. Não sou racista, nem
chauvinista, não tenho qualquer tipo de presunção sobre ninguém, mas tenho uma
assunção da minha experiência, da minha visão e de um sentir sobre um país,
sobre um povo. Não sei se somos bem-vindos naquele país onde estive por um
breve período de tempo a trabalhar para construir, ainda que por um período
muito, muito diminuto, uma melhor organização, uma melhor herança de trabalho.
Num pais que tanto precisa.
Em viagem para o Lobito, descobri ao longo de seiscentos
quilómetros, uma nova Angola. Não é uma viagem fácil entre barreiras policiais,
com os respectivos subornos, pois existe sempre qualquer coisa que está em
infracção para quem não é do país. A descoberta de uma nova Africa nas suas
paisagens, desde a passagem por Porto Aboim até ao Lobito, empolgante e
arrebatadora. Até ao Lubango, passando pelos embondeiros, as palhotas, os desfiladeiros, a serra da Leba, a Fenda da Tundavala, a Restinga...Mas este episódio por terras angolanas fica para uma nova história, com uma perspectiva mais positiva e sobretudo apaixonante.
My first experience of Africa, working, was Angola . When the plane began to approach the city of Luanda, the window frame made us see a picture almost single-color, homogeneous and dusty.
The image of thousands and thousands of shanties in the mud still is in my memory. When I arrived I smelled Africa. I realized it was another reality . The sticky humidity of the heat coming through the automatic doors of the airport entrance was stifling .
Still inside the airport customs people in a threatening tone muttering some words in portuguese that were almost imperceptible, trying a bribery using psychological pressure in the passengers that were arriving from Lisbon, "you are coming to work in Angola" as if we were illegal. Was unusual and odd. It was not just the informal treatment, was the detachment with which they spoke, sounding repetitive and dispassionate, as if they made this more than a thousand times, no further interest besides the money. I understood that the reality was very different. No one greeted us and gave us welcome, no smiles or receptivity to anyone. That's when I thought that a country who supposed to be a brother country, who have the same language, the history intersection, were not.
Already outside the airport, we found that they had forgotten to pick up us. Common thing, the lack of timeliness or performance of the duties on Angola. There is always a reason for these kind of episods, no one prevents anything, everything is possible, everything is normal, everything is tolerable. I had just reached a new cadence, a new pulse.
At the exit of the airport, and on the way to the fate that awaited me, the streets were crowded of people and cars on top of each other everywhere, intersected people on the streets in all directions, some seemed lost, others were begging, other were sold and passed to a destination hard to realize.The shanties multiplying everywhere, with tin roofs and plastic sealed with loose bricks that made weight for the roof does not come off, windows and doors all with security grills. The filth, garbage, debris all huddled on the edge, in the middle, everywhere, shocking poverty, contrasted with the high motor cars that passed not so infrequently. Candongueiros, the táxis and the only transportation in the city, funneled up the streets. Were the Hiaces in the '70s in Portugal, now blue and white, decorated with motifs rogues pennants football clubs, stickers, names of football players, beliefs and thanks in large letters.
In shaping the infrastructure of the city, with a bump architecture of the 60s, most in very poor condition. Buildings that recall the suburbs of Lisbon, as Damaia, there it was replicated .The megalomaniac construction of the Constituent Assembly in the city center said the grandeur of growth of the country but shocking poverty surrounding. Everywhere it makes exchanges and sales of anything. Everything is sold on the street. The informal market, we do not know the size, should employ more than half of the population, realizing by the amount of unemployed people who came through the applications, almost 100 %. The informal market that should serve the needs of consumer goods a very high percentage of the population of Luanda . Given the scarcity of products and services that the country faces.
Begining the work . The contact with the people who came in asking for work contradicted the impression of arrogance felt at the airport. The humility and sympathy existed. They came by the dozen at our door, waiting hours to speak to me, hoping for a job that would give them the prospect of a better life. A life that forgets more than 30 years of war, which silences the disease, which shut hunger in a country depressed and that seems to have forgotten the people.The mishmash and mess piled up. Purchasing simple things took hours of journey and turned into full days tour through the roads of Luanda, in the intense traffic everywhere. Assaults with weapons on our team, on our doorstep, to steal mobile phones and the few kwanzas went. Although it securely to the door armed with a G3 . Workers who disappeared. Appeared after a few days ... drunk Other emerging from the death of a family member. Alcohol is a problem with which the country will have to deal in the future. The people, men and women are immersed in alcohol. Submerged in a family disorganization that all women have three, four, five and six children, from adolescence, of different men who do not assume paternity and everyone accepted this without discussion. Are the uncles, grandparents, parents of the woman who assume the role of parent in children's lives, with all the fatalities that can cover the lack of parental role.
One day in the evening, we went out for a dinner in the Island of Luanda, famous restaurants that open the island of Luanda, and I met a new Luanda. With a black bay reflecting a bright light in the water, along with the lights of the new hotels and companies. Discovered a fascinating side of the city, beside the heaving growth of the country. The side that does not let you see the imperfections and difficulties.
I'm not the colonial time, do not even know what that means. I do not know what is a country to have dominion and power over others. I'm not racist or chauvinist, I do not have any kind of presumption about anyone, but I have an assumption from my experience, my vision and feel about a country, on a people. I do not know if we are welcome in this country where I worked for a very small period of time, to build a better organization, a better heritage work.
Traveling to Lobito , discovered over 600 kilometers, a new Angola . It is not an easy trip between security checkpoints, with their bribes because there is always something that is in violation to anyone who is not in the country. The discovery of a new Africa in their landscapes, from passing through Port Aboim up to Lubango was exciting and overwhelming. But this episode is by Angolan territory for a new story, with a more positive outlook and above all passionate .